quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Tragédia

Esta semana morreu a Maria. Tinha sida. Junta-se aos outros dezasseis contabilizados pelo mesmo motivo.
O Pedro e a Rute, com os seus dois gémeos, viram os seus projectos de vida brutalmente interrompidos por um camião desgovernado. São mais quatro vítimas a juntar ás quarenta e seis desta semana nas nossas estradas.
A D. Maria viu o seu sofrimento interrompido. Diabética, já amputada, não resistiu a complicações desta doença. Engrossa a lista dos oitenta e oito portugueses que esta semana foram vítimas de Diabetes Mellitus.
O António não resistiu. Desempregado, o seu excelente curriculo académico não lhe pareceu valer nesta crise. Cortou nalguns medicamentos para a sua tensão tentando, com isso, adiar o desmoronar financeiro familiar que lhe parecia inevitável. O coração não gostou e o enfarte foi extenso e fatal. Junta-se a outros cento e sessenta e cinco portugueses falecidos com o mesmo diagnóstico, só esta semana.
A mercearia do Sr. Manuel hoje não abriu. Achei estranho, habituado que estava a vê-lo, pela manhã, de volta das caixas de fruta que expunha com deleite aos olhos da freguesia. Diz a Celeste, padeira, que o encontrou caído, de boca ao lado e que chamou o INEM. Infelizmente nada puderam fazer. Junta-se aos outros trezentos e doze que morreram esta semana, vítimas de doenças cérebro-vasculares.
A Celeste acabou o seu calvário. Estava um palito, coitada, mas lúcida, conformada pelo destino que lhe reservou um cancro da mama, apoiada na filha e no Centro de Saúde que não lhe largaram a cabeceira com mimos e paparicos. Teve o mesmo destino que outras vinte e oito mulheres que morreram esta semana pelo mesmo motivo e que outros quatrocentos e oito doentes que morreram com cancro.
O Alcides da farmácia disse-me que o Sr. Joaquim morreu. Bronquítico, fácies azul acizentado, já não saia de casa, sempre agarrado à garrafa de oxigénio, prenda de mais de vinte anos nas minas. Junta-se a mais duzentos e dezassete que morreram por doença pulmonar, incluindo oitenta e nove por pneumonia bacteriana.
Passo o olhos pelas primeiras dos jornais. Falam de mortos de fetos. Dizem que é por causa de as mães terem sido vacinadas contra a Gripe A.
Compro três diários. Folheio-os. Fetos mortos. Vacina contra Gripe A à cabeça dos culpados.
Nem uma palavra sobre os bébés que foram forçados a uma existência orfã e prematura. As suas mães não tiveram escolha e estavam grávidas antes de lhes ser dado a optar pela vacinação.
Continuo a folhear. A tragédia por detrás de tantas mortes nesta semana, mil novecentos e sessenta e oito (DGS), muitas evitáveis, muitas adiáveis, não parece comover a imprensa.
O que a leva a ignorar a morte de quase duas mil pessoas, semana após semana, e a valorizar como tragédia as mortes fetais, infelizmente já previstas, independente de humores ou vacinas?
Irá pesar-lhe a consciência por cada grávida que duvidou e que tem uma probabilidade dez vezes maior de vir a ocupar um catre nos cuidados intensivos?
A escrita encanta, destrói, acaricia, acusa, alerta e mata.
O código deontológico dos Jornalistas falará em negligência?

6 comentários:

  1. Bem pensado. Mas é preciso, então, retirar daí todas as consequências.
    E as autoridades de saúde? Não foram elas próprias a provocar uma intranquilidade pública em relação à Gripe A absolutamente desproporcionada? Porque é que durante a campanha eleitoral a nossa amiga Ana Jorge vinha todos os dias à televisão com o assunto?
    Quando eu argumentava, na minha redacção, que um morto por gripe, A, B, ou Z, não é "uma notícia" e menos ainda uma "abertura" de telejornal, como podia convencer os editores se a senhora ministra tinha "convocado" os jornalistas sobre o assunto?
    Seguindo a brilhante analogia do meu amigo, onde está a energia governamental para aplicar, por exemplo, o plano nacional de combate ao cancro? Será normal que alguns "serviços" espalhados pelo país continuem a operar um ou dois casos por ano?
    Por mais que encontre - e bem - exemplos de desproporção de prioridades nos jornais eu devolvo-lhe o dobro para as autoridades de saúde.
    Quanto à gripe e à vacina também não gostaria de partilhar um certo clima instalado de "tabu", em que quem faz perguntas é automaticamente nomeado tacanho ou, pior ainda, perigoso inimigo da saúde pública.
    Eu tenho dúvidas, que partilho aqui consigo.
    Já conseguiu encontrar algum estudo fundamentado ou especialista sério, de qualquer área, que lhe demonstre que esta gripe vai matar mais?
    Tenho vários a dizer o contrário. Neste momento, parece, só com muito futurismo e pessimismo se chega lá.
    E conheço um perito, um mesmo sério, que afirma, convicto, que a relação benefício-risco da vacina não está demonstrada.
    Porque será que os EUA publicaram legislação a isentar as empresas fabricantes de responsabilidade cível?
    E o adjuvante? Porque será que há países que não o utilizam?
    E se as nossas autoridades de saúde estão tão bem documentadas, porque raio alteraram já várias vezes as guidelines para grupos de risco -ora é uma dose, ora são necessárias duas, ora voltamos à dose única...
    O jornalismo, tem toda a razão, é um bocado histérico. Até certo ponto, isso faz parte dos mecanismos de protecção das sociedades abertas. Mas, conceda, neste caso não foram dos jornais os primeiros gritos, nem os mais estridentes.

    Aceite um abraço,
    CE

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  2. Amigo CE
    Esta gripe não vai matar mais. Vai matar diferente. E vai doer conviver com a morte que se não espera. O resto das perguntas, verdadeiras FAQ, estão respondidas nos sites oficiais. Mas todos sabemos que a consulta do que é oficial não consegue competir com o que chega anonimamente via mail. É exactamente isso que é preocupante e que deve fazer os jornalistas sérios reflectir. Os outros... estão na reciclagem e não sabem em que botão o seu futuro será decidido: esvaziar ou repor.

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  3. Caríssimo,

    Na nossa troca de sms, como sabe, convenceu-me de que o padrão etário das mortes por gripe A é, de facto, um problema de saúde pública.
    Tenho andado ocupado com outros assuntos e não sei deste, está bom de ver, o suficiente, daí também não ter feito notícias, que ainda encaro como algo de maior responsabilidade que estas opiniões na net, por melhor intencionadas que sejam.

    Na sexta-feira, já depois de lhe escrever, chegaram-me provas de que o INEM continua, um ano depois, a perder centenas de chamadas por dia! Juro-lhe que fiquei parvo. Eu sei que percebe porque é que não consigo achar sério tanto filme em torno da gripe.

    Um abraço e olhe que o seu Benfica, afinal, também não anda grande coisa... uff!

    CE

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  4. E, já agora, o que há de irritante nas FAQ, em problemas sérios de saúde pública, é a falta de respostas.
    Essa ausência não é irritante: é insuportável.

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  5. Comecei, nos intervalos de outras coisas, à procura do assunto. Deixo um contributo que me parece relevante:

    http://dempeus.nireblog.com/post/2009/11/25/ocho-razones-para-no-vacunarse-contra-la-gripe-a

    "En proporción hay muchos muertos jóvenes (y entre ellos las embarazadas) por gripe A, pero en números totales mueren menos jóvenes y menos embarazadas por gripe A que por gripe estacional".

    Juan Gérvas,
    Profesor de atención primaria en Salud Internacional (Escuela Nacional de Sanidad, Madrid) y profesor en Salud Pública (Facultad de Medicina, Universidad Autónoma, Madrid)

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  6. Amigo Carlos
    O Dr. Juan Gérvas transporta os génes da melhor colheita do anarquismo espanhol. Diz coisas fantásticas, escreve coisas lindas, empolga assembleias, mas não tem de decidir nem governar porra nenhuma. Todas as suas "provas" infalíveis caem ao mais dedilhar de pesquisa científica...séria.
    É exactamente este o perigo do momento presente: todos se entretêm com o acessório e ninguém liga peva ao principal.
    O que mais dói é ver os seus colegas (espero que a maioria tenha carteira profissional e esteja empregnado da respectiva ética) derreter tinta com mortes de fetos, que nada tiveram a ver com a vacina da Gripe A, e dormir decansadinhos sobre as grávidas e os jovens que têm morrido.
    Não há sentido de decência no que se escreve, sabendo que tem implicações nas atitudes de terceiros?
    Grande parte dos jornalistas portugueses estão como o Gérvas: escrevem lindo mas ao lado. São anarquistas. Mas, ao contrário destes, são incultos e irresponsáveis pelos danos colaterais que provocam.
    Abraço
    E deixe o Benfica. Joga bem e dá espectáculo. Por vezes não ganha. Paciência. Mas joga futebol. E os meus olhos já tinham saudades de ver o Glorioso a jogar futebol.

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