quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A memória ou a oportuna falta dela

Lembro-me bem.
Dirigimo-nos, eu e a minha companheira de sempre, ao notário para fazer a escritura da nossa primeira casa, desde logo presa a um empréstimo hipotecário à Caixa Geral de Depósitos.
Estávamos em Peniche, em 1989 e a taxa de juro batia nos 30%, acompanhada por muitas vénias e agradecimentos ao funcionário da CGD que nos tinha feito o favor de despachar o nosso processo daquela pilha à sua esquerda, envolta em fumo de displicente cigarro e super agradecidos do aval do nosso colega e amigo Dr. Coelho e Silva, exemplo magno da mão que se dá a um colega mais novo.
A mão direita estava suada durante a leitura daqueles palavrões jurídicos todos e a tremer ficou quando chamados a colocar a nossa vida na expressão azul de uma caneta Bic Crystal.
Trinta anos de compromisso, juros atrás de juros, combatidos com noites, fins-de-semana e consultório até horas obscenas.
A vida foi poupada, honrando os nossos pais, funcionários públicos num antanho apertado e de vida limpinha, o que permitiu pagamento antecipado e propriedade plena.
Muitos anos depois, a segunda escritura, agora de uma propriedade nas Quintas da Serra, Freguesia de Peraboa, um luxo burguês de uma casa de pedra para reconstruir e 3 hectares de silvas e mato para desbravar, mas com uma vista de sonho para a nossa Covilhã, extensível numa cascata contemplativa de presépio pela Varanda dos Carqueijais, ruínas do Sanatório dos Ferroviários, Penhas da Saúde e Terroeiro e ao fundo, imponente e majestática, a Torre com os seus futuristas edifícios da Força Aérea e o perfil do conquistado Cântaro Magro.
Lembro-me muito bem das duas escrituras que fiz.
Correspondem a períodos muito específicos da nossa vida familiar e representam o investimento de todo o esforço de uma vida de trabalho.
Como as posso esquecer?
Como posso confiar em alguém que não se lembra de ter feito uma escritura de uma casa?
Decerto esse alguém ou não se lembra porque não é oportuno lembrar-se ou, muito mais grave, porque aquela escritura não representa um esforço honesto de vida mas sim um acréscimo fácil de património.

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